- Criado: 12 Janeiro 2021
Boletim Especial n. 38 - 12/01/2021
No Boletim n. 38, Eloísa Gabriel dos Santos (PUC/SP) apresenta dados sobre a situação da mulher negra na sociedade brasileira que evidenciam que a perpetuação da desigualdade é parte da concepção de progresso no Brasil democrático do século XXI. Estes dados, agravados pela pandemia da Covid-19, apontam que a desigualdade social brasileira não se resume apenas à estratificação em classes da nossa sociedade, mas também se dá através de hierarquizações baseadas na raça e no gênero.
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Desigualdade secular entre as mulheres negras só se aprofundam na pandemia do Covid-19
Por Eloísa Gabriel dos Santos
Foto: “Six women wearing white pants posing”. Foto por Clarke Sanders. Disponível em: https://unsplash.com/photos/JpCOGj0uIlI. Acesso em: 18/12/2020.
O isolamento social em decorrência da pandemia do Covid-19 tem posto em evidência as desigualdades sociais no Brasil. De acordo com os dados apresentados todos os dias pela mídia acerca das famílias atingidas, percebe-se que essa desigualdade tem sexo, cor e classe, uma vez que a grande maioria da população atingida é feminina, negra e pobre. O vírus explicita uma realidade de desigualdade racial histórica, denunciada por cientistas sociais e historiadores ao longo dos anos.
O racismo existente em nossa sociedade, que têm nas mulheres negras suas maiores vítimas, causa desigualdades históricas, prejudica a saúde e a vida destas mulheres, excluindo-as dos processos de crescimento intelectual, social e político.
O poeta negro e nordestino Arnaldo Xavier[1], nos deu um título para essa realidade utilizando a expressão “matriarcado da miséria”, mostrando como as mulheres negras brasileiras tiveram sua experiência histórica marcada pela exclusão, discriminação e rejeição social. E mesmo nessa condição representam resistência e liderança em suas comunidades em todo o país.
Historicamente as mulheres negras foram jogadas à própria sorte e não experimentaram a mesma experiência das mulheres brancas em que demandas específicas relacionadas à luta contra a submissão feminina, aos direitos políticos e direitos sobre o corpo, etc. que a luta do movimento feminista tão bem colocou na pauta mundial. No caso brasileiro, as mulheres negras, majoritariamente se encontram ocupadas nos trabalhos precários, com baixa escolaridade e vivendo em lares sem presença masculina, chefiando a casa, providenciando o sustento dos seus.
Em 2010, segundo o IBGE, a proporção de mulheres responsáveis pelas famílias era de 37,3%, apontando um elevado aumento entre a população urbana (39,3%) e diminuição considerável em áreas rurais (24,8%). Se considerarmos o quesito cor ou raça, as famílias onde a mulher preta ou parda era a responsável pelo sustento da família é ainda maior (38,7%) E entre as famílias de renda até 1/2 salário mínimo per capita, nas áreas urbanas (46,4%) e na área rural (26,0%), elas são um grupo importante. Essa realidade demonstra que, em pleno século XXI, a realidade das mulheres negras nada ou pouco se alterou. A realidade da pandemia vivenciada pelos brasileiros e brasileiras vem aumentando ainda mais esse fosso de desigualdade.
Os dados demonstram que no Brasil o passado e o presente andam juntos, ou seja, a realidade de extrema desigualdade social se faz presente não somente no Brasil colônia, mas no Brasil democrático atual, pois o progresso brasileiro sempre esteve aliado à preservação da desigualdade, aspecto que pode ser visto na substituição lenta do trabalho escravo pelo trabalho livre. Este Brasil democrático nunca foi democrático para todos. Em particular para as mulheres negras, sempre se impôs uma realidade de último lugar na fila em que primeiro vem o homem branco, depois o homem negro, depois a mulher branca e por último a mulher negra, estabelecendo como normal este lugar concreto e simbólico do racismo em nossa sociedade.
Nesse sentido, a luta da mulher negra tem se constituído como importante bandeira a ser considerada, atualizada e resgatada no cotidiano das mulheres que lutam por igualdade, em reconhecimento à presença desta mulher nas camadas mais pobres da sociedade e na busca por apoio do Estado. Elas são maioria nas filas de desemprego, na fila do posto de saúde e na fila dos benefícios sociais, por exemplo. Quando não olhamos para essa realidade histórica, afastamos as mulheres negras da cidadania e deixamos de reconhecê-las como sujeito de direitos, reforçando a ideia de que o Brasil republicano e democrático continua sendo apenas para alguns.
A realidade da mulher negra, que inclui as pretas e pardas, nos faz questionar assim a desigualdade brasileira, a qual não passa somente por uma realidade de classe, mas também por uma realidade de raça e gênero. É preciso reconhecer que as mulheres negras precisam ser protagonistas de sua história e que a elas nunca foi dado esse direito, pois historicamente, desde que seus antepassados foram trazidos a esta terra, sempre lhes foi dado um papel secundário e subalterno na sociedade em que a sua maior luta foi pela sobrevivência dos seus, implicando, muitas das vezes, na falta de condições para olhar para si e cobrar o seu lugar na sociedade.
As mulheres negras aprenderam desde cedo que sempre tiveram de fazer do limão a limonada, usando com maestria os poucos espaços de sobrevivência que lhes foram deixados, enfrentando cotidianamente a exclusão e a desigualdade. A história demonstra que, alijadas do mercado formal, as mulheres negras, desde o século passado, fizeram de suas casas unidades de sobrevivência econômica e de solidariedade, nas quais por várias circunstâncias da vida improvisaram os arranjos familiares, sendo mãe e pai de sua prole.
Para que possamos ter um exemplo da realidade de uma parcela das mulheres negras, destacamos que, de acordo com Fernanda Lopes, doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) e membro do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), que falou no 11º encontro de Acompanhamento da Covid-19 sobre as mulheres grávidas e no pós-parto durante a pandemia, o número de gestantes hospitalizadas por Síndrome Respiratórias Agudas Graves, confirmação de Covid-19, é maior entre negras (pretas e pardas) quando comparadas às brancas. Entre as gestantes negras hospitalizadas, 14,2% foram a óbito. Entre as brancas, o desfecho morte foi observado para 7%.
Em tempos de pandemia, quando essa realidade está sendo escancarada, é tardia e urgente a importância de se pensar em condições políticas, sociais e econômicas que mudem essa realidade, transformando de vez a invisibilidade a que, por muito tempo, as mulheres negras foram submetidas e dando a elas seu real protagonismo na sociedade brasileira, evitando as mortes e o acometimento de vários sofrimentos em decorrência de uma realidade de desamparo social que dura séculos.
Eloísa Gabriel dos Santos é doutora em Serviço Social pela PUC/SP.
Nota:
1. Arnaldo Xavier é poeta e teatrólogo, nasceu em Campina Grande-PB, em 19 de novembro 1948. A expressão “matriarcado da miséria” tornou-se amplamente conhecida quando da publicação do artigo, de mesmo nome, escrito por Sueli Carneiro (Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-matriarcado-da-miseria/. Acesso em: 23/11/2020).
Referências:
BEHRING, Elaine Rossetti; BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e história. São Paulo. Cortez. 2007.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo. Selo negro 2011.
IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatística de Gênero: uma análise dos resultados do Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro. IBGE. 2014
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Nova história das mulheres. São Paulo. Contexto. 2012.
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Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre a questão étnico-racial em tempos de crise que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
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